O FIGURA - Júlio César Pereira Borges
Pai, morador da cidade de Catalão-GO, 84 anos, viúvo, pai de 09 filhos, jogador de truco, visitador de vizinho, cristão de roça e apaixonado pelo Corinthians.
Filho, morador de Goiânia, 41 anos, divorciado, não tem filhos; não joga nada, não conhece os vizinhos, ateu e já foi apaixonado pelo Corinthians.
Ambos em uma conversa:
- Pai.
- O quê?
- O que isso na mão do senhor?
- Dedo.
-Tô perguntando sobre esse papel. Engraçadinho!
-Jornal.
- Jornal de quê?
- De papel.
- Vai pentear macaco.
Breve silêncio. O pai com leve sorriso responde:
- É jornal da Canção nova.
- Credo pai, não tem outra coisa para ler?
- Cada qual no seu cada qual.
Breve silêncio.
- E esse calor. Ainda bem que tem previsão de chuva para hoje.
- Chove não. O vento não virou.
- Como o senhor sabe?
- É só repará. Se bem que hoje não dá pra afirmá nada. Até na chuva não pode confiá.
- É pai. A ciência tá muito evoluída, dificilmente erra.
- Bobage. Por que eles não faiz chuvê,então?
- Já fazem. Bombardeiam as nuvens com sódio o que provoca a precipitação.
- O quê?
- Joga sal nas nuvens derrete o gelo e chove.
- Não adianta nada. Onde não chove não tem nuvens.
- O senhor não deixa de ter razão.
- É lógico.
- KKKKK. É pretencioso.
- O quê?
- Convencido.
O pai esboça uma rápida expressão facial de não concordância, mas não leva adiante o assunto. Segue novamente um breve silêncio. E, então, ao observar o novo carro de seu filho lhe pergunta:
- Esse carro é mais caro do que o outro?
- Não. É mais barato.
- Pra quê que trocô. Cê tá andando é pra trais?
- Tô de licença para fazer o doutorado e meu salário reduziu.
- Pra quê fazê isso, então?
- É investimento na minha carreira.
- Investimento pra perder dinheiro!
- Quando terminar, tenho aumento de salário.
- Muito? Vai ganhar mais que antes?
- Praticamente a mesma coisa, mas vou trabalhar em um só lugar e menos.
- Trabalhar menos pra quê? Na sua idade eu levantava 4 horas da manhã, tirava leite de 70 vacas, sozinho, desnatava, trabalhava na roça e quando tinha lua clara limpava o quintal.
- Hoje, as condições são outras. São outras exigências para a sobrevivência. Sou professor, tenho que estudar.
- Parece que ocê vai ficar três anos atoa?
- Atoa não. De licença para estudar. Estudar é trabalho.
- Como é que tem gente que estuda e trabalha?
- O senhor, hein! Quando não quer entender não adianta.
- Só tô falando como é. As coisa de hoje é muito mais fácil e o povo ainda acha difícil.
- Isso é relativo.
- O quê?
- Depende do ponto de vista.
- Depende nada. É do jeito que eu tô falando mesmo.
- Não adianta. Vou ter que concordar com o senhor.
- Tem nada. Cada qual no seu cada qual.
- Eu acabei de dizer isso e o senhor não concordou.
- Falô nada.
O filho em silêncio, olhou para seu pai e sem que ele percebesse balançou levemente a cabeça num sinal de negação. Entendendo que a sequência da conversa só iria incrementar a discórdia, manteve-se calado. Enquanto seu pai disfarçadamente lhe observava de rabo olho.
Retornando o assunto, o filho fala.
- Vou trazer um livro que eu tenho para senhor. Sertão sem fim, de Bariani Ortêncio. Aquele do programa Frutos da Terra. Ele retrata a vida do senhor.
- Ele nem me conhece.
- Tô falando no sentido figurado, pai.
- O quê?
- O livro retrata a vida do sertanejo, da vida do homem da roça.
- É livro de retrato?
- Não pai. Retratar significa contar a história do sertanejo.
- Retratar para mim é tirar retrato.
- Então, tá pai.
- Acho que o senhor vai gostar, tem umas 200 páginas.
- Deus me livre. Vou morrer e não terminei de ler o livro.
- Não precisa ler ele todo.
- Então, o que adianta?
- O livro é de contos curtos. São pequenas histórias. O senhor pode ler uma ou duas por dia.
- Não vou entender nada, não.
- Entende: são histórias que o senhor já viveu.
- Eu?
- Eu sei que o senhor entendeu o que eu disse e está com graça.
- Quando eu voltar aqui eu trago.
- Não sei se vou ler, não. Vai atrapalhar meu truco.
- Antes de cada jogo, se o senhor ler em voz alta para seus parceiros de truco, eles vão gostar, todos já passou dos 80 anos e conhecem o que está escrito no livro.
- Se já conhecem, não precisa ler, então.
- Pai. Vai catar coquinho.
Com um leve sorriso, o pai disse:
- Já pensou eu lendo para veiarada. Tenho que começar um dia antes do jogo. Eu leio de vagar; o Erpídio não escuta bem, tem que gritar; o Dito dorme até com as cartas na mão, imagina escutando eu ler.
-KKKKKKKKK. O senhor é uma figura.
Júlio César Pereira Borges
Professor do curso de Geografia da Universidade Estadual de Goiás e doutorando pelo
Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás